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CARNAVAL 1910

Graciliano Ramos
Para Todos Rio de Janeiro, fevereiro de 1957. As negras se haviam tingido com papel vermelho molhado ...


Eram três dias bem desagradáveis. Sujeitos precavidos fechavam-se, olhavam suspeitosos a rua, mas isto não os livrava de pesares: se se distraíam, inundavam-nos jatos de água suja. Iam mudar a roupa, furiosos. Avizinhavam-se depois das janelas, atentos aos moleques armados de bisnagas enormes de bambu. Além desses inimigos, havia os indivíduos que traziam, em mochilas, pacotes de alvaiade, zarcão, ocre, tinta de todas as cores, com que se pintavam os transeuntes.

O doutor verboso declamava discursos irados nas esquinas, referia-se aos selvagens, aos tupinambás. Ninguém lhe dava importância — e a zanga esfriava. Bem, agora, molhado, não valia a pena recolher-se. O jeito que tinha era entrar na função, tornar-se também selvagem, vingar-se, provocar outras indignações e arrastar para a folia os amigos cautelosos.

Animavam-se todos e perdiam a compostura, acabavam achando aquilo interessante. Alguns viam perfeitamente que estavam fazendo maluqueira e desregravam-se com moderação, quase a pedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Homens graves, pais de família, tisnados, bebendo, aos gritos. Mau exemplo, doidice. Na quarta-feira retornariam a sisudez necessária.

Cadeiras nas calçadas. Meninas sérias e bicudas reprovando os excessos, sacudindo com espanto e enjôo as cabeças, onde se arrumavam papelotes. Não se contaminavam, estavam livres da pintura, dos banhos, de atracações perigosas: comportavam-se direito, como se aguardassem a passagem da procissão. Rapazes ousados atiravam nelas esguichos de água de cheiro e eram mal recebidos. Muxoxos. Que assanhamento! Nada de brincadeira. Brincadeira com moça findava na igreja ou rendia pancada. Os desejos não se escondiam sob nuvens de confete, não se amarravam com serpentinas, não se excitavam com éter.

Ainda se desconhecia o automóvel. A gente escassa pisunhava nas barrocas do calçamento ruim, equilibrava-se nas pedras pontudas.

As negras se haviam tingido com papel vermelho molhado. E andavam tesas para não desmanchar os enfeites do pixaim, branco de fiapos. De longe em longe desfilavam parafusos, tipos envoltos em numerosas anáguas que se iam encurtando. As de cima, perto do pescoço, eram camisas de crianças. Esses espantalhos andavam inchados por dentro e por fora pacholas, cobertos de renda engomada.

Papangus vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias. Bobos de máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gingavam, falavam rouco e fanhoso:

— Você me conhece? Se não conseguiam disfarçar-se, recebiam vaia e ficavam arreliados. O índio, de penacho e tanga, era personagem obrigatória e silenciosa.

Passava o cordão, levantando poeira, causando entusiasmo. Um frevo decente em redor do porta-bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem nenhuma alteração, muito bem ensaiadas. As figuras marchavam na disciplina; o homem da maromba conduzia o bando, importante; papai velho exibia vaidoso a cabeleiras de algodão e as longas barbas de espanador; o morcego, na frente, fazia piruetas, agitando as asas de guarda-chuva. Mascarados solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros, inconvenientes. Outros, reunidos, firmavam as críticas, motivo de receios e alarma. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários a fatos melindrosos e particulares, mexericos todos, sem graça nenhuma. Criavam-se inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas.

Um cidadão espiava o morcego e o parafuso de longe. Dois ou três embuçados musculosos entravam-lhe em casa, batiam-no a cacete. Berros, súplicas, sangue, apitos sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas — e era bom evitar opiniões. No ano seguinte as críticas seriam menos ofensivas.



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