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Sombra da Escradidão

O Brasil é um país fundado sobre o trabalho forçado e o comércio de gente. Como foi isso? E o que tem a ver conosco, hoje?
Eles estavam por toda parte. Na lavoura, nas cidades. Dentro de casa, nas senzalas, fugidos no mato. Prestando serviços nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador: vendendo água, comida, panelas, miçangas, badulaques. Exercendo ofícios especializados, como conta um observador da vida brasileira do século passado, o francês Jean-Baptiste Debret: "... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos escravo. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede ao habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas."
Eles eram carregadores, também. "Carregavam tudo nesse Brasil, onde homens de qualidade se recusavam a levar o mais ínfimo pacote", escreve a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no livro Negros, Estrangeiros. Carregavam as cadeirinhas onde os brancos iam sentados, baús, caixas, caixões, caixotes, sacas de café, os barris com os dejetos produzidos nas casas, que logo cedo, às 6 da manhã, no Rio de Janeiro, procissões de negros iam jogar ao mar. Este foi um país de escravos. O maior país de escravos dos tempos modernos, talvez. Ou, pelo menos, o país moderno mais dependente de escravos. Ou, pelo menos, o maior e mais dependente de escravos do continente americano. Havia diversos tipos de escravo. De propriedade do senhor ou alugados. Empregados no eito ou no serviço doméstico. E havia os escravos "ao ganho" - aqueles que o senhor punha a realizar determinado serviço para fazer algum dinheiro. Os que trabalhavam nas cidades, exercendo diversos ofícios, podiam ser libertos, mas podiam ser também escravos "ao ganho". Ou escravas, que tanto podiam vender quitutes como prostituir-se, para proveito de seu senhor ou senhora.

Este foi um grande país de escravos, e quem se lembra disso? Nesta segunda-feira, 13 de maio, comemora-se a abolição da escravidão. Faz 108 anos que a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. Nessa data, fazendo uma exceção, no geral processo de esquecimento nacional, talvez se lembre um pouco a escravidão, nas escolas e nos jornais, se bem que cada vez menos: o 13 de maio foi colocado em desgraça pelo Movimento Negro, considerado uma data "branca", comemorativa de um gesto de suposta "benevolência". Prefere-se hoje comemorar o dia da morte de Zumbi, o herói do Quilombo dos Palmares, 20 de novembro.

Trocou-se um mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói do inconformismo. Entre ambos fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa, complexa - e, fora do círculo dos especialistas, ignorada. O Brasil teve três séculos e meio de regime escravocrata, contra apenas um de trabalho livre. Três e meio para um! Ao longo desses três séculos e meio, importou 4 milhões de negros africanos, 40% das importações totais das Américas, numa das mais volumosas operações de transferência forçada de pessoas havidas na História. Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se obriga outro a fazer e pessoas humanas são mercadorias.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura:

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...


São versos espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890. fazia dois anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque. Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que nós "nem cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só olhar em volta, ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o processo de esquecimento que dura até hoje.

Havia escravos boçais e escravos ladinos. Boçais eram os que, mal chegados da África, não conheciam a língua nem o costume da terra. Ladinos eram os já afeiçoados à língua e truques locais. Um escravo podia ser objeto de compra, venda, empréstimo, doação, penhor, seqüestro, transmissão por herança, embargo, depósito, arremate e adjudicação, como qualquer mercadoria. Mas era uma mercadoria especial. Quando cometia um crime, era punido com os rigores do Código Penal. Por isso, o historiador Jacob Gorender escreveu: "0 primeiro ato humano do escravo é o crime". Então ele virava gente, de pleno direito.

O historiador Luiz Felipe Alencastro, que última um aguardado livro sobre o assunto, O Trato dos Viventes, afirma: "A escravidão não dizia respeito apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade toda, e criou um padrão de relações sociais e de trato político que deixou conseqüências graves". Para insistir em algo que nunca é demais repetir, o Brasil é um país criado na concepção de que trabalho é escravidão. Portanto, liberdade é não-trabalho. A historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, da Universidade Federal Fluminense, observou que a atividade exercida pelas pessoas era qualificada diferentemente, nos documentos, segundo a pessoa fosse escrava ou livre. Escreve ela, no livro Das Cores do Silêncio: "Enquanto os escravos estavam associados a algum tipo de serviço (serviço de roça, serviço de carpinteiro), os homens livres viviam de alguma coisa. Em geral, de seus bens e lavouras, mas também de seu jornal, de seu ofício de carpinteiro ou simplesmente de agências".

Gente pobre também tinha escravo, uma mercadoria barata, exceto nas poucas fases de escassez de oferta. Mesmo ex-escravos tinham escravos, e até houve casos de escravos que tinham escravos. Tinha-se escravo porque era uma mercadoria barata, mas também por outra razão, no caso dos ex-escravos, de pele escura: para mostrar à sociedade que não eram escravos. Ou, como escreve Hebe Maria Mattos de Castro, a condição de proprietário de escravos, nem que fosse um escravo só - e geralmente era um só mesmo -, servia para "negar de maneira global a situação anterior".

Em 1798, o Brasil tinha 3,2 milhões de habitantes e 1,6 milhão de escravos, a metade da população. Em 1816-1817, vésperas da Independência, a população total era de 3,6 milhões de habitantes e os escravos 1,9 milhão. Entre os escravos havia os africanos, nascidos na África, e os crioulos, nascidos no Brasil. Os africanos quase sempre foram maioria, dada a intensidade do tráfico, que os despejava aos milhares, a cada ano, nos portos de Salvador ou do Rio. Em Salvador, em 1835, os africanos eram 63% dos escravos e 33% da população de 65.500 habitantes. Foi quando ocorreu a famosa Revolta dos Malês, uma das maiores insurreições de escravos do Brasil, liderada por negros muçulmanos, conhecidos como "malês". Os traficantes baianos abasteciam-se na África Ocidental, aquela parte saliente do continente africano, mais ao norte, onde fica o Golfo de Benin, de secular ligação com a Bahia, e os cariocas na África do centro-sul, a região do Congo e Angola. Secundariamente, os cariocas poderiam ir buscar escravos também em Moçambique, na costa oriental africana.

Entre 1790 e 1830, só pelo Porto do Rio de Janeiro entraram 700.000 escravos. Eles abasteciam não só a cidade e a província do Rio, mas também as regiões Sudeste e Sul. A massa de recém-chegados estava em constante renovação, o que equivale a dizer: o Brasil não era apenas um país de escravos, era um país de estrangeiros. A escravaria, escrevem os historiadores Manolo Florentino e José Roberto Góes, num trabalho inédito, A Paz das Senzalas, era "um conjunto marcado por altos graus de desarraigo social, mediante a incessante introdução de forasteiros". Os mesmos autores acrescentam: "0 cativeiro assentava-se na contínua produção social do estrangeiro".

A massa dos escravos, que o senso comum costuma imaginar homogênea e até, nas visões mais românticas, solidária, era diversa e abrigava conflitos em seu seio. Em muitos episódios, emergiu o conflito entre crioulos e africanos. Em 1789 houve um levante de escravos na Fazenda Santana, em Ilhéus, Bahia, notável porque os negros amotinados deixaram um documento contendo suas reivindicações ao proprietário, Manuel da Silva Ferreira. "Meu senhor, nós queremos paz, e não queremos guerra", começa o documento. Em seguida os revoltosos, que durante dois anos conseguiram manter-se escondidos no mato, pedem desde a permissão para trabalhar em suas próprias roças, nas sextas-feiras e nos sábados, até a liberdade de "brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença." Mas eles também não querem "fazer camboas e mariscar", e dizem ao senhor: "Quando quiser fazer camboas e mariscar, mandes os seus pretos Minas". Tratava-se de uma rebelião de crioulos, e eles estavam pouco se importando com a sorte dos "pretos Minas", nome genérico dos africanos caçados na Costa da Mina, na África Ocidental.

Inversamente, a Revolta dos Malês foi um movimento de africanos. Quase todas as revoltas de escravos em Salvador e no Recôncavo Baiano, e elas foram muitas, eram de africanos, e os crioulos ou ficavam neutros ou contra. Escrevem os historiadores João José Reis e Eduardo Silva, falando da Bahia, no livro Negociação e Conflito: "Tudo indica que a presença de muitos africanos inibia politicamente os crioulos, e os persuadia a comprometer-se com as classes livres ou senhoriais".

Os próprios africanos eram diferentes entre si - vinham de regiões diferentes, de diferentes etnias, línguas e costumes. Negros de origens diversas conviviam no mesmo plantel, e interessava ao fazendeiro que fosse assim. Robert Walsh, um inglês que viajou pelo Brasil no início do século passado, escreveu que a população negra era composta de "oito ou nove castas diferentes", que entre si se empenhavam "em lutas e batalhas", e acrescentou: "Os brancos incentivam essa animosidade, procurando mantê-la viva, por acharem que ela está intimamente associada à sua própria segurança".

Nos últimos anos aumentou o conhecimento do que foi a escravidão no Brasil. A busca paciente nos arquivos, o levantamento de números e o emprego de métodos estatísticos estão na raiz desse avanço, bem como o surgimento de uma geração de historiadores votada ao trabalho miúdo, constante e aplicado. O uso dos recursos da antropologia e da economia e as pesquisas no exterior, especialmente sobre a África, também contribuíram. Pena que o resultado desse trabalho fique restrito ao mundo acadêmico, mesmo porque dá origem a estudos acadêmicos, em linguagem acadêmica, de difícil acesso ao leitor comum.

Vão-se apresentar a seguir duas amostras do que a historiografia atual tem produzido. A primeira versa sobre a crucial questão do tráfico de escravos. A outra conta a história de uma fuga de escravos ocorrida no município de Vassouras, Estado do Rio. O tráfico é o tema do livro Em Costas Negras, de Manolo Garcia Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual se apresentará um resumo. A fuga de Vassouras será contada a partir de um dos capítulos do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio dos Santos Gomes, professor da Universidade Federal do Pará. Os livros têm em comum o fato de resultarem de trabalhos premiados pelo Arquivo Nacional, sob cujos auspícios foram publicados, em edições modestas e de pequena tiragem, no fim do ano passado.

Roberto Pompeu de Toledo - Jornal da Poesia



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