Entrevista de Daniela Mercury para o jornal português
Balé Mulato marca não só regresso de Daniela Mercury aos espectáculos

Aqui está ¿a essência do meu trabalho¿
"Balé Mulato" marca não só regresso de Daniela Mercury aos espectáculos em Portugal, mas à cidade do Porto, onde já não actua há quatro anos. O ¿furacão da Bahia¿ apresenta hoje, no Coliseu do Porto, o seu mais recente álbum produzido por Ramiro Mussotto e Alê Siqueira. Em conversa com o JANEIRO, a cantora brasileira falou deste projecto/carreira que pode ser entendido como um regresso ao axé e ao samba, mas que imperceptivelmente ainda faz deambulações pelas influências electrónicas.

"Balé Mulato" é um regresso ao axé e ao samba, depois de ter passado por influências um pouco mais electrónicas?
De alguma forma pode ser entendido assim. No entanto, nunca me afastei, porque o que fiz foi misturar, neste disco de carreira, influências electrónicas para buscar novas sonoridades. No entanto, estas acabam por ser menos perceptíveis. Na verdade, a electrónica pode ser muitas coisas, porque é uma linguagem muito aberta e ela existe dentro do contexto do meu trabalho. O último álbum "Carnaval Electrónico" foi um projecto especial e não um disco de carreira. Foi uma experiência diferente para entrar nos clubes e nos ambientes de dança, onde a minha música originalmente não entrava. Mas nos concertos mantive sempre a presença principal desta síntese que se ouve em "Balé Mulato", em "Feijão com Arroz", em "Canto da Cidade", que são os discos que sintetizam a minha carreira de percussão com o pop. Não sei se deu para entender, porque música é difícil de explicar [risos].

Por isso afirma que sempre foi uma adepta da liberdade de criação?
Gosto muito de pesquisar e acaba por ser interessante, porque dá para misturar. No fundo, a música contemporânea é muito cheia de fusões. Nos anos 80 falavam muito de fusão e eu andei me fundindo com a música electrónica [risos], mas a minha música original é o que trás "Balé Mulato" e é a essência do meu trabalho.

Dos 14 temas reunidos neste trabalho, três são da sua autoria. A Daniela sempre tem uma participação directa na concepção de cada projecto?
Mesmo que não fizesse composições, o conceito musical do trabalho sempre foi dado por mim. Mesmo tendo ao meu lado músicos extraordinários quem diz o que quer, quem propõe as sonoridades e o repertório sou eu, porque desde que comecei a minha carreira o trabalho sempre foi muito liderado por mim. Tenho uma grande liderança no trabalho e, por isso, participo em tudo como na produção e nos arranjos. Uma coisa é tocar um instrumento, outra coisa é saber o que se quer em termos de conceito e sonoridade. Esse é um exercício mais amplo, através do qual se pode compreender o que é possível fazer com a banda, como se produz uma faixa e o que se quer dela, ou seja, aonde se quer chegar com aquela pesquisa musical. Como sou uma artista que tem uma referência profunda com a Música Popular Brasileira (MPB) tradicional, o que quis fazer, desde o início da minha carreira, foi ver de que forma podia interferir e trazer elementos novos à MPB.

Foi isso que a levou a regravar, neste disco, temas como "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, "Meu pai Oxalá", de Vinicius de Moraes e Toquinho e "Pensar em Você", de Chico César?
Adorava a música do Vinicius e do Toquinho. Conhecia-a na telenovela "Bem Amado" e vi que ela tinha um potencial para ser dançada. Nós sempre nos lembramos de Vinicius para a bossa nova e nunca vi ninguém a cantar Vinicius no Carnaval e para dançar. No entanto, quando cantava nos bares cantava muito a sua obra nos sambas-afro que tinham mais ritmo e que foi precisamente a fase dele com Toquinho e a fase dele baiana. Então pensei como é bonito poder mostrar no Carnaval ¿ que os críticos criticam as músicas pela falta de poesia e de banalidade, que eu não vejo ¿ a música da Bahia que tem muita poesia, muita riqueza melódica e que podem ser simples, mas são muito belas. Colocar Vinicius no contexto de Carnaval fez com que as pessoas fizessem uma comparação com as canções de compositores que não são tão conhecidos como ele. Neste momento, procuro pontuar a beleza da música feita nos últimos 15 anos em Salvador. A "Aquarela do Brasil" tem este mesmo intuito. Quando gravo este tema em samba de roda, que é um ritmo originário do reconcavo baiano, pontuo que a música nordestina é uma música brasileira de alta qualidade. É uma forma de mostrar que o Nordeste faz parte do Brasil e que faz um diálogo intenso não só com o próprio país, mas com o mundo. É uma forma de legitimar, além de ser uma música muito emblemática. Normalmente, no Brasil, colocam o axé como um género regional e, às vezes, separam os géneros de um ponto de vista da exclusão, sem grande participação no mercado mundial. Mas eu não concordo com esta maneira de ver as coisas. O mesmo se passa com a música baiana e o olodum que já é conhecido no mundo inteiro, assim como o samba-reggae que é uma influência clara para os artistas brasileiros que nascem hoje e que não podem dizer que não conhecem. Por isso, toda a capa do disco, a gravação da Aquarela foi intencional, além de que são canções que amo e que queria cantar.

A voz, a dança e a energia contagiante com que pauta todos os seus espectáculos, no final, é canalizada para onde?
As pessoas perguntam muito de onde vem essa energia. Acho que é a minha energia vital. Desde pequena sempre fui muito eléctrica e tinha de estar sempre a fazer alguma coisa para me movimentar e, por essa razão, também sou bailarina desde criança. Aliás, se não fosse bailarina teria que ser atleta ou qualquer coisa do género, porque tem pessoas cuja energia é mais mental, no meu caso sou mental, mas também sou muito de corpo. Costumo brincar dizendo que quem canta muito também gosta de falar muito. E a verdade é que quando o espectáculo acaba fico com a adrenalina no alto e não sou só eu. Depois do concerto adoro conversar, trocar ideias e fico com a mente muito fértil. A verdade é que saio com tanta energia que daria para fazer mais quatro ou cinco horas de espectáculo.

Passou por Aveiro, hoje actua no Coliseu do Porto e depois segue para Lisboa. O que é que o público pode esperar deste espectáculo, cujo cenário, ao que sei, tem muitas influências do período colonial e do estilo barroco?
Em Fevereiro, lancei um DVD que ainda não chegou a Portugal, que se chama Baile Barroco e que foi gravado no Carnaval de 2005. Chama-se Baile Barroco, porque a minha cidade, Salvador, é a primeira capital do Brasil, com uma influência portuguesa enorme. É um estilo de época que predomina no Brasil até hoje, nomeadamente, as igrejas portuguesas, o rocóco e tudo isso teve uma influência muito grande na cultura popular brasileira. Então, o que trago para este espectáculo, além do repertório do "Balé Mulato", são duas canções do DVD, os músicos estão com as caras maquilhadas lembrando o Carnaval, o palco tem um cenário feito por um artista plástico baiano, com muito dourado e várias telas que se sucedem, a primeira das quais uma favela, e é como que o Brasil se fosse revelando. Trago ainda elementos da cultura popular, como as bacias que as bailarinas vão tocando como percussão e que estão agarradas à cintura, inspiradas na criação de uma grande folclorista que é a Emília Bianca, que fez uma brincadeira com os tu-tus de ballet clássico. As roupas também são todas de chita, com o colorido e os dourados do barroco português e que estão muito presentes no povo do Brasil e que fazem parte do imaginário da nossa cultura, que também passa por aí. E um dos momentos mais divertidos do espectáculo é quando a banda toca em percussão, com tachos, panelas grandes, baldes e colheres de pau, onde interpretam cirandas. A primeira parte é mais centrada no novo disco e na segunda canto os sambas-reggae e outros temas. O espectáculo traduz a minha relação poética com o Carnaval e é o que inspira estas canções que trago comigo. Serve também para mostrar às pessoas que tudo isto tem uma grande profundidade e que não é apenas música para dançar, mas para se sentir e perceber a delicadeza desta poesia.

Dos espectáculos previstos, está agendada a sua presença no Mundial da Alemanha. Sendo este um país tão diferente do Brasil, a Daniela acha que vai ¿ver o samba no pé do alemão¿, como canta no tema "Quero ver o Mundo Sambar"?
Há muitos anos que faço espectáculos na Alemanha e muito dificilmente os alemães vão conseguir sambar algum dia [risos]. Eles gostam muito da música brasileira e têm o seu próprio jeito de dançar, que respeito muito. O importante é que eles sintam e compreendam a música para que possamos dialogar, mas tenho certeza que do jeito deles vão dançar.

E que outros projectos tem até ao final do ano? Ainda regressará a Portugal?
Vou andar em tournée pela Europa durante dois meses. Entretanto, regresso a Portugal no dia 1 de Junho para festas de santos e para este período já tenho confirmado espectáculos em Braga, Leiria, Cascais, Coimbra e outros mais que ainda vão ser confirmados.

A Daniela nunca se cansa deste corrupio?
Canso-me, mas gosto. O artista tem de ir onde estão as pessoas. Quando os meus filhos eram pequenos diziam-me: ¿Mãe, porque é que você não chama eles para virem cá?¿. Como não posso chamar as pessoas para onde moro, eu tenho de ir até eles.

Agora fora deste âmbito do disco e dos espectáculos, pergunto-lhe o que mais a revoltou quando o Vaticano cancelou a sua presença no concerto de Natal pelo facto de fazer parte de uma campanha de luta contra a Sida e na qual fazia referência ao uso do preservativo?
O que mais me revoltou foi a maneira como as coisas foram feitas, ou seja, cancelaram a minha participação a cinco dias do concerto. Além de achar inaceitável que a esta altura a Igreja ainda tenha esta posição, mas esta é só a minha opinião pessoal, achei que a forma como o fizeram foi muito grosseira. O concerto estava confirmado há mais de cinco meses e se tinham alguma preocupação em relação a esse respeito deveriam ter me consultado antes. Ninguém pode contratar uma pessoa sem perguntar nada sobre ela e depois justificar o cancelamento, porque tinham receio que abordasse o tema do preservativo ou fizesse um apelo durante o espectáculo. Não existiu qualquer diálogo, apenas uma posição da parte da Igreja. Achei que profissionalmente foi uma situação muito desrespeitosa e desagradável, mesmo que pessoalmente eu não aceite a posição da Igreja. No entanto, esta atitude acabou por gerar uma campanha muito positiva em prol do uso da ¿camisinha¿ no Brasil e sobre a importância da sua utilização. Há males que vêm para bem.

Diz a música de Gilberto Gil que ¿Toda a menina baiana tem um jeito, um santo, um dom que Deus dá¿. É assim com a Daniela?
Diz o Gil que é. Acho que o contexto da cidade da Bahia, como diz o Jorge Amado, favorece a que tenhamos um jeito muito diferente e particular. Algumas das caracterís-ticas que nos apontam são a espon-taneidade, a alegria, a dança, mas não sei se todas as meninas baianas são assim [risos]. Mas pelo menos essa menina baiana que o Gil canta e que o Jorge Amado fala, acho que tenho algo dela.


Fonte : Goreti Teixeira, Jornal O Primeiro de Janeiro (Portugal) - Abril 2006


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