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DVD Canibália de Daniela Mercury
A apoteose de uma voz nacional nas areias de Copacabana


No DVD Canibália, gravado ao vivo em show no Rio de Janeiro, Daniela Mercury irmana os ritmos do Brasil sob a ótica carnavalizante do afeto e da miscigenação
No olhar, Daniela Mercury deixa transparecer a emoção e a alegria de ver a multidão cantando sozinha os versos de O Canto da Cidade (Daniela Mercury e Tote Gira), faixa-título do álbum de 1992 que sedimentou a explosão da cantora baiana em território nacional. Faz 20 anos que Daniela Mercury é a cor e o canto do Brasil. E a multidão que entoa O Canto da Cidade – no número apoteótico que encerra o show gravado ao vivo no Réveillon carioca de 2011, nas areias da praia de Copacabana - é de proporções igualmente nacionais. São mais de um milhão de pessoas – vindas de toda parte do Brasil e do mundo – que consagram a mais importante cantora baiana de música afro-brasileira, conhecida como axé music. Mas Daniela não está sozinha no palco miscigenado. Estão lá também a baiana Banda Didá, o grupo carioca Afro Lata, o amazonense Boi Bumbá Garantido e os ritmistas e passistas da escola de samba carioca Unidos da Tijuca – símbolos da integração rítmica nacional proposta pelo show. O número é um dos mais emblemáticos do DVD Canibália – Ritmos do Brasil – Ao Vivo na Praia de Copacabana, superprodução das empresas Páginas do Mar / Canto da Cidade, realizada pelo Canal Brasil sob a coordenação da própria Daniela Mercury e viabilizada pelos patrocínios da Vivo e do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

 

No DVD Canibália, Daniela Mercury irmana e integra os ritmos do Brasil sob a ótica carnavalizante do afeto e da miscigenação antropofágica. É sintomático que Swing da Cor (Luciano Gomes) – o samba-reggae que catapultou a cantora ao estrelato nacional ao estourar em 1991, um ano após ser lançado em disco – seja introduzido no show com citação de Tropicália (Caetano Veloso), o hino-manifesto do movimento arquitetado por Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1967. Assim como também é sintomático que Daniela faça um dueto virtual com Carmen Miranda (1909 – 1955), ícone dos Carnavais brasileiros dos anos 30 aos 50, no samba O Que É que a Bahiana Tem (Dorival Caymmi), grafado com o ‘h’ do título original. A folia popular que gera o projeto multimídia Canibália, iniciado com CD lançado em 2009.
A baiana Daniela Mercury tem e sempre teve ambição artística. Captado em DVD sob a direção de Paulo Fontenelle, do Canal Brasil, o show desenvolve e amplia o conceito do álbum de estúdio Canibália, editado em 2009. “O DVD firma o projeto Canibália, um manifesto de união e afetos”, conceitua a cantora em depoimento do making of exibido nos extras do DVD (nos quais é possível também ver Como Nossos Pais, a música de Belchior que Daniela canta desde o início da turnê). A direção do show é dividida pela artista com Vavá Botelho, fundador do Balé Folclórico da Bahia. Vavá é presença fundamental porque o show é também um espetáculo de dança. Bailarina pela própria natureza, Daniela Mercury enfatiza a dança neste show que propõe a integração de diversas formas de arte. Música e dança se entrelaçam num balé mulato que celebra a negritude e expõe telas de pintores como Cândido Portinari (1903 – 1962) e Carybé (1911 – 1997) no cenário idealizado por Gringo Cardia, além de imagem do fotógrafo Mário Cravo Neto (1947 – 2009), a quem Daniela dedica o DVD. A dedicatória é extensiva a Neguinho do Samba (1955 – 2009) – baiano que sintetizou a batida do samba-reggae, exportada pelo Brasil para o mundo – e a Ramiro Musotto (1963 – 2009), percussionista que sempre expôs em seu trabalho o conceito de miscigenação.
Não por acaso, aliás, o roteiro do show Canibália abre com tema instrumental de Musotto, Mbira, parceria do percussionista com Santiago Vazquez. O tema evoca ao mesmo tempo a cultura africana e a indígena, bases da mestiçagem nacional que pauta o espetáculo. Já neste primeiro número os tambores ressoam no passo das coreografias de Daniela e da trupe de bailarinos, presenças iluminadas em cena. Na sequência, o pot-pourri Benção do Samba celebra a cadência bonita da terra, aglutinando Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso), O Samba da Minha Terra (Dorival Caymmi) e o Samba da Bênção (Vinicius de Moraes e Baden Powell). Benção pedida no pot-pourri seguinte, Preta, a Dona Ivone Lara, nobre dama do samba carioca que completou 90 anos em 2011. Integrando os sambas do Rio e da Bahia, Daniela Mercury junta Eu Sou Preto (J. Velloso e Mariene de Castro) e Sorriso Negro (Adilson Barbado, Jair Carvalho e Jorge Portella), faixa-título do álbum lançado por Ivone em 1981, aditivada com um toque de rap, um dos símbolos mais fortes da cultura negra musical da atualidade.
Propagadora orgulhosa do samba-reggae de sua terra, a cantora saúda Neguinho do Samba ao convocar a baiana Banda Didá para embasar com o toque feminino de sua percussão os sucessos O Mais Belo dos Belos (Valter Farias, Guiguio e Adaílton Poesia), Por Amor ao Ilê (Guiguio) e Ilê Pérola Negra (Miltão, Rene Veneno e Guiguio). A saudação a Neguinho feita nestes temas que reverenciam o Ilê Aiyê – um dos mais tradicionais blocos afro da Bahia – se torna essencial porque o som criado por Neguinho está enraizado no trabalho de Daniela e de grande parte da música produzida na Bahia. O mestre do samba criou células rítmicas que são uma das identidades mais fortes e perenes da música do Brasil, inclusive face aos olhos externos.
Em vez de delimitar fronteiras, o show Canibália – Ritmos do Brasil as demole em nome da integração rítmica (inter)nacional. O reggae Sol do Sul (Daniela Mercury e Gabriel Povoas) aquece a ideia de uma América Latina irmanada por seus afetos, ritmos e calores. Minas com Bahia (Chico Amaral) propõe a integração do universo montanhoso das Geraes com o litoral de Salvador e arredores. Neste número, sem perder o profissionalismo, a cantora deixa entrever o orgulho da mãe coruja que recebe no palco seu filho Gabriel Povoas. Codiretor do show, Povoas toca violão e faz dueto vocal com Daniela em número marcado também pela afetividade.
aixa-título do terceiro álbum de Daniela, Música de Rua (Daniela Mercury e Pierre Onasis) se integra perfeitamente ao conceito de celebração do show, apresentado ao ar livre, de graça, para milhões. E vem das ruas de Vigário Geral – outrora símbolo da violência de um Rio de Janeiro que se torna mais pacificado a cada dia – a batida percussiva do grupo Afro Lata, arregimentado por Daniela para embasar com seu baticum o pot-pourri que junta O Reggae e o Mar (Daniela Mercury e Rey Zulu) e Batuque (Rey Zulu e Genivaldo Evangelista).
Pausa harmoniosa na efervescência rítmica que pauta o show, a balada Iluminado – da lavra do compositor mineiro Vander Lee – é a reafirmação da proposta de comunhão de afetos que rege Canibália em todos os sentidos. Afeto que Daniela estende aos ritmistas e passistas da tradicional escola de samba carioca Unidos da Tijuca, recrutados para turbinar Quero Ver o Mundo Sambar (Daniela Mercury) e Vide Gal (Carlinhos Brown), o samba em que o baiano Brown – um tribalista tropicalista – saúda as belezas naturais do Rio de Janeiro e que, por isso mesmo, ganha citação da marcha Cidade Maravilhosa (André Filho). Na sequência, em sintonia com o subtítulo Ritmos do Brasil do show, Daniela integra a Nação Amazonense em sua festa nacional, trazendo componentes do grupo Boi Bumbá Garantido, de cujo repertório canta – na companhia de vocalistas do Garantido – os temas Paixão de Coração (Demétrius Haidos e Geandro Pantoja) e o sucesso Vermelho (Chico da Silva), acompanhado em empolgante coro pela multidão. É o som do boi com um toque do samba da terra. E o samba da terra – como toda a música do planeta, aliás – vem da África, cujas divindades (em especial, Yansá) são saudadas em Oyá por Nós, parceria de Daniela Mercury com Margareth Menezes, voz-irmã do afro-pop-brasileiro que Daniela Mercury propagou em escala nacional há 20 anos.
Em síntese, Canibália – Ritmos do Brasil representa a apoteose de uma cantora e compositora baiana que sempre faz ferver o caldeirão do axé sem jamais nivelar o gênero por baixo. Daniela Mercury pensa alto. A realização da superprodução eternizada neste DVD simboliza a coroação de seu pensamento aglutinador. Ao irmanar os cantos e os batuques de várias cidades, Daniela Mercury se consagra como uma voz da integração rítmica nacional com a liberdade antropofágica já permitida pelo título do show nascido no berço do Carnaval. Urdido com suingue tropical, o espetáculo é Arte que extrapola a função de entretenimento ao irmanar ritmos e afetos.

Fonte : Daniela Mercury - Mauro Ferreira - Novembro de 2011

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